Samuel Beckett é um forte nome do teatro da língua inglesa. Irlandês e considerado um dos últimos modernistas e recebeu o Nobel de Literatura em 1969. É com ele que Renato Borghi e Élcio Nogueira abrem as portas de casa para o espetáculo Fim de jogo, no Festival de Curitiba.
Tratou-se de um movimento natural para ambos. Em um bate-papo, Borghi contou sobre sua trajetória pessoal e profissional, o que foi determinante para a escolha da obra. “Em 1979, comecei a trabalhar no que chamei de Teatro Vivo, negando que o teatro estivesse morto, que a palavra estivesse morta”. Nos anos 90, ele conheceu um grupo de jovens em oficinas e workshops. Élcio, neste momento, era seu aluno, considerado por ele o melhor. Por conta disso, o ator foi convidado para ser assistente de Renato, para logo depois assumir as rédeas do projeto. Assim, surgiu a vontade de montar um novo grupo e o Teatro Promíscuo, isso por volta de 1992.
O nome, apesar de escandaloso, não se refere à sexualidade. “Já que tínhamos que fazer sexo com camisinha, então que o teatro fosse contagioso”, pontuou. “Era promíscuo de todas as tendências. Queríamos trabalhar com profissionais de várias procedências”. Para exemplificar, ele citou uma mostra de dramaturgia contemporânea que reuniu 15 autores da nova geração da época de São Paulo. “Sempre foram projetos muito arriscados“. E esses projetos, apesar de sua característica que não inspira impulsos mercadológicos, já passaram por 15 países.
A criação dessa ‘promiscuidade’ também partiu do desejo de uma relação mais horizontal na produção de teatro, sem a figura centralizada do diretor dominante, e ela foi formada principalmente por egressos de outras escolas, resgatando os moldes de 1950, segundo Élcio. “O ator é também autor do espetáculo, é diretor de seu personagem, tem autonomia”, enfatizou Borghi.
Fim de jogo traz quatro personagens mutilados, com doenças ou deficiência física. Em um abrigo, eles observam, por uma luneta, a terra devastada fora dele. Borghi, a princípio, não teve uma boa impressão inicial com Samuel Beckett, já que não havia variação nas adaptações às quais assistiu. Pensando-se nisso, foi dado um direcionamento que explorasse o limite entre estranho e familiar: o conceito de lampejo. “Na maioria das cenas que criamos, a maioria das pessoas se encontra em situações cotidianas, e esse lampejo de estranheza é um rasgo que representa Beckett”, disse Élcio, citando uma cena em que, no meio do diálogo, se levantava e derramava uma jarra de suco em si. “A única maneira de se trabalhar com o autor seria não negando o cotidiano”, enfatizou.
Borghi passou por uma situação que impulsionou a decisão da montagem da peça nos moldes em que desejava, isso após a aproximação dele com as obras do irlandês no fim da década de 90, na execução de oficinas que abordavam o autor: tendo passado por intervenções cirúrgicas na coluna, ele chegou a ficar paralítico por um tempo. A dependência gerada pela situação despertou a atenção dos dois entrevistados, que se viram, na vida real, executando ações da peça. “Foi uma aproximação a partir da vivência. Eu entendi a peça”, salientou, que foi emendado por Élcio: “Rimos muito da situação”.
Como a peça já estava em andamento antes mesmo de montada, afinal, ambos estavam ‘atuando’ já no dia a dia, precisariam de um diretor que entendesse a dimensão do projeto. Foi assim que Isabel Teixeira assumiu a tarefa e teve uma ideia para a apresentação (que foi recusada por teatros): fazer na casa do próprio Borghi. O espetáculo deveria ocorrer ali. “Exploramos os limites da vida real e do teatro”, disse Élcio, explicando sobre a montagem do cenário, que envolveu intervenções no local, ainda que mantendo a essência. “O projeto surpreendeu. Foi um fenômeno”.
O apartamento não era o mais importante, segundo o ator, ainda que representasse um ponto de partida. Tratava-se mais da manifestação de uma linguagem que encontraram, não da linguagem em si, possibilitando, assim a expansão do projeto. Em algumas apresentações, há até recriações cenográficas que espelham o local original. “É como se levássemos nossa casa nas costas”, pontuou Élcio. Já em Curitiba, para o Festival, a ideia é outra, envolvendo a ocupação de casas de outras pessoas, sendo que o cenário no qual vão ocorrer “caiu como uma luva”, de acordo, ainda, com o ator — Borghi se recordou das apresentações a domicílio que faziam, rindo das situações vividas para a manutenção do teatro pelas quais os profissionais da área passam.
Sobre a importância do cenário, Élcio explicou: “O bunker poderia ser em qualquer lugar. A casa é um signo que trabalha a ideia de familiaridade, e trouxemos itens que garantam esse sentimento, como prêmios do Renato. Os pais dele constam na ficha técnica, representados, em cena, por retratos. Por ser um jogo nosso, mantivemos o espetáculo, que conta com quatro personagens, a dois. Para isso, nos inspiramos na primeira versão do Beckett, em que Clov [personagem] assume o papel de outros, e eu assumi essa tarefa para mim. A questão de ser ou não dentro da casa do próprio Renato não é tão importante. O importante é a proximidade do público“.
“A questão é com os espectadores. Não estamos falando de seres mutilados do século XXIII. Somos nós! O nada apresentado na peça é subjetivo. Há uma nova perspectiva para o público, que vê as coisas acontecendo em volta e se pergunta ‘o que é esse nada?’. A natureza do espetáculo é essa”, finalizou o ator.
As duas apresentações estão esgotadas, e o Curitiba Cult vai contar pra vocês o resultado dessa aventura. Continue acompanhando nossa cobertura do Festival de Curitiba e confira mais matérias exclusivas que estão por vir.
A programação completa do Festival de Curitiba e informações das vendas de ingressos você pode conferir aqui.
Foto-destaque: Patrícia Cividanes
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