Aécio Neves, Mean Girls e o Fim da Gourmetização

Linhas do tempo são chatas, didáticas e confundem com um monte de datas e fatos? Sim. Então vamos começar com uma linha do tempo:

1825: O gastrônomo francês Jean Anthelme Brillant-Savarin lança o livro “Fisiologia do Gosto” e ajuda a difundir o termo gourmet, usado para designar pessoas com paladar aguçado.

2008: A maior crise econômica global recente eclode, impulsionada pela bolha imobiliária americana, afetando em série todas as grandes potências mundiais. Enquanto isso, Cafés Gourmets são a aposta do mercado brasileiro para atenuar a baixa no preço internacional do produto, sendo os precursores de uma nova tendência de marketing no setor alimentício que utiliza o termo para elevar o status do produto.

2014: Um ano após as Manifestações dos 20 Centavos, Aécio Neves não aceita os resultados das eleições presidenciais e afirma que fará uma oposição “incansável e intransigente”. Vivendo uma grave recessão, efeito retardado da Crise de 2008, o Brasil entra também em uma crise política sem precedentes. Enquanto isso, a Band lança a primeira temporada do reality gastronômico Masterchef Brasil, com episódios semanais às terças-feiras.

fotos: Passe Livre São Paulo

2019: Segundo o IBGE, os números no Brasil atingem 13 milhões de desempregados, 11,4 milhões sem carteira assinada e 24 milhões trabalhando por conta própria, a maioria de modo informal. Enquanto isso, o Instagram anuncia o fim das curtidas, argumentando que as pessoas precisam se importar menos com likes e mais com contar suas histórias. E o Masterchef Brasil, agora com episódios inéditos aos domingos e fillers às terças, apresenta sua pior audiência desde a estreia.

O universo está conectado. A máxima new hippie usada para legendar fotos em posição de ioga pode parecer dica de coach quântico meia boca, mas é verdade. O efeito borboleta existe e um mesmo fato afeta nossas vidas de diferentes maneiras, mesmo que seja complicado ter uma noção do todo quando dentro do olho do furacão de acontecimentos. É por isso que o raio gourmetizador, que transformou tapioca em panqueca rústica de mandioca com renda de creme bruleé, pamonha em pasta de milho verde orgânico aglutinada com leite e açúcar e picolé em paleta mexicana, nos ajuda a compreender tão bem toda a transformação econômica da última década. E o contrário também é possível.

Mean Girls

Em 2009, a revista The Economist publicou a famosa capa com a imagem do Cristo Redentor decolando como um foguete propulsor e a manchete “Brazil Takes Off”, o Brasil Decola, sublinhava a montagem. Na matéria, a revista apontava que o Brasil tinha sido um dos últimos a ser afetado pela crise de 2008 e um dos primeiros a sair dela, quase ileso, e que, num futuro próximo, poderia vir a se tornar a 5° maior potência do mundo. Essa aparente blindagem econômica era resultado do sucesso colhido com a estabilização da moeda a partir do Plano Real, da era Itamar Franco, do tripé macroeconômico, da era FHC, das políticas de inclusão social, diminuição da pobreza e aumento do poder de compra da população, da era Lula, e da descoberta do Pré-Sal. Vindo do nada e finalmente superando seus ex abusivos, a Ditadura Militar e o Governo Collor, o Brasil agora era a novinha sensação que só andava no grupo dos mais descolados do colégio, o BRICS. E com a China, começou um affair intenso. Com a alta do preço das commodities, produtos base como petróleo e soja, o Brasil elevou significativamente o nível das exportações para dar conta do crescimento chinês e se firmou como um dos principais parceiros da futura maior potência mundial.Resultado de imagem para Brazil Takes Off

Se não fosse o bastante, o país foi escolhido para sediar dois dos maiores eventos esportivos mundiais: a Copa do Mundo e as Olimpíadas. O restaurante D.O.M, de Alex Atala, despontou no ranking dos 100 melhores do mundo, segundo a revista britânica Restaurant, chamando a atenção para a cozinha e ingredientes da nossa terra. O filme Tropa de Elite 2 conseguiu levar mais 11 milhões de pessoas ao cinema, ajudando a consolidar o cinema nacional.

O Brasil era agora a mulher jamais falada, a menina jamais igualada, conhecidíssima como a noite de Paris, poderosíssima como a espada de um samurai e mais popular que Regina George. Todo mundo queria ser nosso amigo. Todo mundo queria nos visitar. Todo mundo queria uma parte para si. Isso tudo deu base para os anos seguintes de ostentação, megalomania e um leeeve deslocamento da realidade.

Mean Girls foi lançado em 2004 e rendeu vários bordões que são usados até hoje

Nos filmes adolescentes, geralmente no segundo ato, existe o momento em que a protagonista, embebida pela popularidade, nega suas próprias raízes e adota um novo estilo de vida totalmente inconsequente e cheio de exageros desnecessários. Foi mais ou menos o mesmo caminho do Brasil.

O Brasileiro é o Lobo do Brasileiro

O capitalismo é uma força que ninguém sabe ao certo controlar. Os EUA são os melhores para lidar com ele, capitalizando tudo e todos. Assassinatos, guerras, doenças e até cupcakes são transformados em indústrias para serem capitalizados. Enquanto lá, desastres como o ataque às Torres Gêmeas, o local onde um crime real foi acometido ou bolinhos de pão de ló cobertos com buttercream são assimilados pela cultura popular em livros, tour, filmes, músicas e milhões de dólares, no Brasil as pessoas veem como grosseira e antiquada a mesma tentativa de monetizar tragédias locais. Mesmo as porções mais liberais aqui ainda são noob para encarar o capitalismo de frente.

Mas uma ala do empreendedorismo brasileiro, que já lidava com demanda internacional, sazonalidade, fluidez de mercado e taxa de câmbio muito antes do Real ser pensado, ensinou as todas as outras categorias como aproveitar a boa onda internacional da economia brasileira: os ambulantes de Copacabana.

Se é baixa temporada, pouco sol e só nativo na orla, a água de coco sai a 3 reais. Se é sol queimando a pino a areia do Rio de Janeiro em pleno réveillon, com gringo louco de caipirinha pagando em cédula estrangeira, os bilhetes da polpa de coco orgânico-detox-gelado começam a ser negociados na bolsa carioca por 10 dólares.

Quando o brasileiro se viu no topo da cadeia alimentar econômica mundial, ele resolveu se tornar o explorador de si mesmo. Com o mercado interno aquecido e o poder de compra alto, não parecia mais correto vender a água de coco a 3 reais para o nativo. Todos os bilhetes deveriam negociados pela lógica da bolsa de Copacabana. No entanto, o nativo já conhecia aquela água de coco, portanto era necessário agregar valor ao produto. O empreendedor brasileiro tinha que dar um jeito de elevar seus preços e surfar também na melhor onda da economia brasileira na história. Com ISS reduzido e FGTS para gastar, o consumidor brasileiro era o rei do camarote com fetiche de inversão de papéis, desejoso por sentir como era ser o gringo explorado. E a gourmetização começou.

Café, hamburguer, brigadeiro, pipoca, salada, suco de fruta, produto de limpeza, guardanapo…

O capitalismo se tornou mais palpável e absolutamente tudo que era ingerível (não necessariamente digerível) e passível de ser gourmetizado, foi. Até mesmo termos clássicos da gastronomia, como chef, bistrô e menu, foram atualizados para chef gourmet, bistrô gourmet e menu gourmet. E na prática o que mudava? Basicamente apenas os preços. Um bistrô gourmet era apenas um bistrô mais caro, geralmente de qualidade inferior, decorado exatamente segundo a cartilha Pinterest e aberto às pressas por um empreendedor sem experiência alguma no ramo, mas com o sonho fervoroso e repentino de trocar seu emprego estável pela cozinha, impelindo-o a se aventurar por um negócio com uma das mais margens de lucros mais apertadas.

E deu certo. A lógica é que se tem alguém oferecendo é porque tem alguém comprando. E havia mesmo. Uma turba de millennials das classes A e B, vivendo a ascensão do Instagram e faminta por imagens agradáveis aos olhos e mais curtidas, foi a sustentação dessa nova safra de produtos e estabelecimentos. A alimentação se tornou parte importante do feed de qualquer aspirante a influencer. A foto do prato de arroz, feijão, bife e batata frita não repercutia da mesma forma que o bowl de salada com tiras de salmão e molho agridoce, então era fácil saber qual postar. E o mercado foi se adaptando às novas demandas que surgiam numa velocidade assustadora, ora focando na apresentação e em embalagens decorativas, ora no discurso sustentável, eliminando as embalagens decorativas.

Bem-vindos à Maior Competição Culinária do Planeta

Em 2014, o Brasil vivia uma de suas mais graves recessões. Mesmo saindo quase ileso da Crise de 2008, o país foi afetado pelas consequências dessa crise no mercado internacional. Os países diminuíram a importação de commodities e o preço dessas matérias-primas caiu, afetando diretamente a base que nos segurava. Paralelamente, a política econômica se mantinha a mesma de 20 anos atrás, com poucas reformas e aprimoramentos.

As Jornadas de Junho no ano anterior, decorrentes do aumento nas passagens de ônibus, se desdobraram em diversas manifestações dos mais variados cunhos políticos, incitadas por grupos online. Tudo isso e muito mais resultou em um país divido nas eleições daquele ano.

No mesmo ano, Alex Atala era eleito o melhor chef do planeta, pelo prêmio Chef’s Choice, e Helena Rizzo a melhor chef mulher do mundo, pela revista Restaurant. A alta gastronomia brasileira estava em seu auge internacional até então. Nesse clima, a Band trouxe ao Brasil a sua versão do reality gastronômico Masterchef, que se tornou uma febre instantânea nas redes sociais. Conquistando aos poucos as classes C e D e uma classe média que surgiu recentemente, o discurso gourmetizador chegou aos mais distantes rincões do país e às massas reais, que fazem o Brasil ser Brasil mesmo.

Coxinha, cachorro-quente, pizza, fast food, pacote de arroz, geladinho, pastel de feira… O mercado se adaptou aos desejos dessa nova parcela consumidora. A marmita do dia a dia virou gourmet e a gastronomia dominava o brasileiro. Como a recessão era recente, o bolso do trabalhador médio ainda se mantinha intacto, e gastar um pouco a mais em mimos para si mesmo era uma forma de elevação do próprio status social.

Aproveitando ainda a cultura popular de que você não deve economizar na hora de comer e comida é melhor sobrar do que faltar, o mercado fazia a festa em todas as classes. E, com isso, começaram a surgir anomalias típicas da expressão cultural brasileira mais tosca, que merece se tornar patrimônio imaterial da humanidade, como taças de sobremesa que pareciam vômito de criança, sopa de sushi, temaki de feijão, feijoada de frutos do mar, cupcake de coxinha, pizza com borda de salsicha, alcançando até mesmo o feito de inventar o kibe cru frito. O brasileiro pareceu entrar em uma competição consigo mesmo para ver quem conseguia criar o mais bizarro (e ofensivo a todas as outras culturas que influenciaram a nossa cozinha) prato. Era o ápice da gourmetização.

Contudo, há uma lei que eu sempre repito: se algo está no seu ápice, ela já começou o seu declínio.

Realidade Crua

Primeiro a gente tira a Dilma, depois o Vice-presidente, depois o Presidente da Câmara, depois o Presidente do Senado, depois o Presidente do Supremo, depois o Deputado mais votado, depois a gente coloca o Aécio.

Foto: Wilton Júnior/AE

Para agravar a crise econômica, uma crise política nunca antes vista no país desestabilizou ainda mais o Brasil e polarizou a política interna. Sem aceitar a derrota nas urnas na disputa presidencial mais acirrada desde a redemocratização, o senador Aécio Neves começou uma campanha contra o novo mandato de Dilma Rousseff, em um grande acordo com outros poderes que partia de uma política de instaurar o medo. E a população se viu dividida entre coxinhas e mortadelas, esquerda caviar e direita pão com ovo, discutindo comunismo quando nem mesmo países comunistas ainda o eram.

Separada por ideologias recém-adquiridas, incutidas pelas bolhas onlines de identificação e pós-verdades, a população se unia apenas pela crise econômica cada vez pior e pelo imaginário gastronômico nacional. Símbolo do avanço econômico de um país que matava 300 crianças de fome em 2001, a comida, agora em abundância, era usada para caracterizar e descaracterizar as diversas classes.

Você é o que você come. Ou mais importante, você parece o que você come.

A essência e manutenção da moda se firma principalmente no desejo da classe dominante poder se diferenciar da classe dominada. Assim que a classe dominada assimila a moda, aquela moda é negada e uma nova moda é adotada pela classe dominante para parecer superior. É o verdadeiro ciclo da vida. E isso fica mais evidente quando a divisão de classes vai além do espectro simbólico.

E qual a negação do exagero gourmetizador? O nome do álbum que todo artista pop mais ou menos vai ter em algum momento da carreira: Back to Basic.

Raw food ou Crudismo é a nova tendência alimentar, embrionada no início do século, e que ganhou fôlego maior a partir de 2011. Cercada de discurso natureba e holístico, a ideia é consumir o alimento em sua forma mais pura, ou seja, crua, para não perder enzimas e nutrientes no processo de cocção e purificar o organismo. É um jeito de comer poético, recheado de bactérias nocivas ao corpo e que vai contra a uma das maiores invenções da humanidade, o cozimento. Mas o setor de marketing dará um jeito de fazer parecer aprazível.

Independente se esse será o novo trend ou não por aqui, é fato que a relação com a comida está sofrendo uma transformação. No universo online, o Instagram maquia a queda nos números de interações com o fim dos likes e discurso empoderado. Com isso, o influencer profissional precisa ir além da foto bonita de comida para angariar engajamento se não quiser pagar pelo impulsionamento. No universo real, a carnavalização gourmet deixou de fazer sentido assim que o número de pessoas passando fome atualmente no Brasil passou os 5 milhões, o desemprego voltou a assolar a população, restaurante começaram a fechar em feito dominó pelo excesso de oferta e diminuição na demanda e o mercado irregular ressurgiu com pessoas vendendo quentinhas baratas em seus isopores.

Se você reclama de passar vontade assistindo Masterchef enquanto tem a sua frente um simples prato de macarrão, imagina aqueles que só têm o simples prato. Não à toa, este ano o reality gastronômico pontuou a sua pior audiência desde a estreia da primeira temporada. Talvez porque a fórmula tenha cansado ou talvez porque a era de ostentação gourmet tenha chegado ao fim. Mas é claro que o cenário mudou como um todo no país e o mercado provavelmente deverá focar classes ricas e pobres e esquecer a média nos anos vindouros.

Em tempos difíceis, nos sobra o apelo por algo melhor no futuro: voltem com o cachorro-quente podrão, coloquem os nomes dos sorvetes em português e não italiano, reestabeleçam o direito de ser da pipoca com bacon, tragam de volta o pingado de boteco, só não recoloquem o cravo no beijinho – esse foi o único grande trunfo da gourmetização.

Por Dimis
13/08/2019 19h13